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| Laerte e a jornalista Eliane Brum, que dirige o documentário gravado em sua casa (Foto: Netflix/Divulgação) |
Primeiro documentário brasileiro da Netflix, Laerte-se estreia nesta sexta (19), à meia-noite, no serviço de vídeo sob demanda.
A dúvida entre colocar seios, ou não, a praticidade
de usar a saia do tipo "envelope", a rotina na manicure e outras
questões femininas da vida da cartunista Laerte Coutinho, 65 anos, são
expostas no filme Laerte-se, primeiro documentário brasileiro da Netflix
que estreia nesta sexta-feira (19), à meia-noite.
Após 60 anos vivendo uma identidade masculina, o que
inclui três filhos e três casamentos, Laerte abre as portas de sua casa
e revela a intimidade do seu dia a dia transgênero para a cineasta
Lygia Barbosa da Silva e a jornalista Eliane Brum (Gretchen Filme
Estrada/2010 e Uma História Severina/2005), que dirigem o filme
produzido pela Tru3Lab para a Netflix.
"Parte de mim acha que esse é um processo meu e
ninguém tem nada a ver com isso. Parte de mim acha que sim, todo mundo
tem a ver com isso. Minha cultura, minha sociedade, meu tempo tem a ver
com isso, sim, e acho legal que haja uma curiosidade, uma inquietação",
disse Laerte durante evento de lançamento do documentário para imprensa e
convidados, em São Paulo, nesta quarta (17).
Laerte-se desnuda, literalmente, a intimidade da
respeitada cartunista paulista, através de um bate-papo informal gravado
dentro da casa onde mora há mais de dez anos. A transformação genital, o
implante de seios, as inseguranças, a morte do filho, o medo da reação
do pai "durão" com sua identidade, a dificuldade de lidar com as
objeções da mãe e a resistência em se expor são alguns dos temas
abordados por Laerte ao longo de uma hora e 40 minutos de filme.
"Ficar pelada não é um problema", riu Laerte,
durante o lançamento do filme, garantindo que não se importa em aparecer
nua no documentário. "A intimidade da minha casa é que era um problema
pra mim, sabe Deus por quê. Entrar em minha casa foi um problema, mas
que foi trabalhado com a devida delicadeza e o cabaço foi-se", completou
bem-humorada.
Desenhos inacabados em cima da mesa, caixas por
arrumar, paredes por pintar e outros detalhes da casa da cartunista
servem de pano de fundo para o bate-papo descontraído que é intercalado
às suas famosas tirinhas e a uma série de vídeos antigos de Laerte
criança, em momentos com a família. "Sinto que estou fazendo algo
vital", diz Laerte, em um trecho do documentário.
HugoSem
revelar muito, para não dar 'spoiler', vale destacar algumas cenas de
Laerte-se como quando a cartunista está fazendo as unhas e a manicure
diz: "você é meu amigo, meu irmão camarada, já te falei". Laerte ri para
as câmeras: "Ela não me chama de mulher, não tem jeito, já tentei
explicar". Outro detalhe que merece destaque é quando Hugo, famoso
personagem de suas tirinhas, aparece vestido de Muriel.
"Comecei a transgeneridade com uma tirinha", revelou
Laerte, durante o lançamento do filme. "Aí uma pessoa que leu disse
'olha, isso aí a gente faz e está meio evidente que você gostaria de
fazer também'. Eu não tinha percebido isso, que tinha me colocado de um
jeito diferente ali. E isso foi um detonador, foi um momento que eu
mudei e passei a compreender que não era só o recurso de uma historinha,
era algo pessoal", contou a cartunista.
Laerte acredita que a sociedade "nunca está
preparada para determinadas questões" como as de gênero, mas essa é uma
investigação que precisa ser feita a fundo, em sua opinião. "Esse filme
presta um bom serviço, no sentido desse amadurecimento de uma
sociedade", elogiou, enquanto defendia que falar sobre o tema "é
absolutamente fundamental".
"Muita coisa está colocada quando a gente fala em
questão de gênero: a gente não está só falando dos problemas das
travestis, das transexuais, das drag e crossdressers. A gente está
falando também das relações entre homens e mulheres, da violência de
gênero que envolve estupros a cada 20 minutos no Brasil, assassinatos de
travestis, do modo como as mulheres estão no mercado de trabalho, como
elas estão representadas na política... Desmistificar essa suposta
sacralidade dos gêneros é um trabalho importante a ser cumprido por
filmes como esse", destacou.
FeminismoAinda
durante o lançamento de Laerte-se, a cartunista falou sobre os grupos
trans radicais que exigem uma "pureza" de definição - "quem não tiver
feito hormonização e não tiver feito transformações corporais não é tão
legítimo, por exemplo" - e falou sobre o chamado feminismo radical "que
tem uma postura excludente, uma ideia de fazer política excluindo toda
colaboração possível".
Essa exclusão, segundo Laerte, não está presente só
na relação da exclusão de pessoas trans, mas também "na exclusão de
qualquer palpite ou qualquer participação, ou qualquer solidariedade
masculina. São pontos de vista que eu acho pouco produtivos e, no fundo,
de uma natureza conservadora".
Laerte, então, defendeu que "o melhor legado da
transgeneridade para a humanidade é a quebra desses modelos, é uma
postura transgressora em relação a esse modelo, porque ele é impositivo,
é uma imposição da cultura patriarcal, que define que mulheres são
assim e homens são assim".
Ser homossexualLaerte
revelou, ainda, que na juventude, quando começou a se ver diante de
questões de orientação sexual, ela não tinha modelos de pessoas que
vivessem a homossexualidade de forma tranquila e aberta. "Era sempre um
problema, era um tabu. Pra mim, que estava iniciando uma vida sexual,
ser homossexual era muito difícil, era quase uma maldição, porque era
assim que era apresentada a questão: uma doença, um crime, ou um
pecado", denunciou.
Feliz de poder fazer parte de um documentário de
alcance mundial que aborda essas questões, Laerte ressaltou que esse não
é um processo fácil e que demora. Segunda ela, ainda existem muitas
pessoas que ocupam cargos em empresas, governos, e que mantêm essa vida
fechada a sete portas "como se fosse uma maldição". "O que aterroriza as
pessoas no mundo que a gente vive é justamente o risco: vou botar minha
carreira em risco? Minha família em risco?'", questionou.
"Eu acho ótimo que minha experiência se torne
positiva para outras pessoas. Mas quando as pessoas usam o termo
'coragem' pra defender meu processo, eu penso 'gente, eu levei 60 anos'.
Só fiz isso quando meus filhos estavam grandes, quando senti uma série
de seguranças, quando sabia que eu ia ter pouca perda de público",
ponderou.
Apesar das dificuldades, Laerte garante que a
consolidação profissional e a sorte de ter uma família compreensiva
ajudaram a fazer com que a questão de gênero não fosse mais um bicho de
sete cabeças. "Sinto que minha vida mudou. Quando saía eu pensava 'vou
pôr uma saia, ou não?'. Diferente de agora, que tenho como questão o que
vou usar quando sair: aquela bota, aquela blusa... Hoje não tem mais
essa questão de gênero para ser decidida quando vou pôr o pé na rua,
porque já estou com isso dentro de casa. Me sinto uma mulher, uma mulher
possível".
Fonte:Correio da Bahia
Tags
Cinema
